Por: Marcelo Henrique
10/08/2021
09:08

O Sol acabara de nascer. Saí fazer uma caminhada com a intenção de dar uma volta completa em torno do quarteirão apenas para desenferrujar os músculos. Eis que, repentinamente, por detrás de uma árvore centenária de uma praça que, no passado longínquo, já foi cemitério, surge uma misteriosa cigana que, em troca de modesta contribuição, se oferece não para ler minha mão, mas para desvendar as névoas do futuro, consultando os oráculos de um baralho cigano.

Aquiesço, ainda meio ressabiado – “um olho no padre e outro na missa”, como se diz. Afinal, aquela mulher surgira praticamente do nada, materializando-se, quase, à minha frente, oferecendo-me, em sua abordagem, os dons de sua propagada vidência.

A indumentária daquela mulher me parece exótica, diferente. A blusa, bordada, branca, de mangas largas, com um decote sensual, no entanto não chega a ser ousado; os ombros estão cobertos por um xale de lã longo com fios dourados; a saia rodada, azul-celeste, com muitos babados, lhe cobre os tornozelos, e uma faixa de tecido colorido envolve sua cintura. Um lenço vermelho lhe serve de adorno, prendendo, suavemente, os negros cabelos. Rendas e fitas parecem ter a função de identificá-la pelo clã a que pertence. Pulseiras, anéis e colares exornam seu incomum visual. E um par de sandálias brancas realça o contorno suave dos seus pés.

Ela retira o maço de cartas de dentro da blusa decotada e as distribui numa mesa redonda, de cimento, igual a tantas outras espalhadas por aquela praça.

Enigmática, Consuelo (é esse o seu nome) arregala os olhos enquanto se debruça sobre os arcanos, murmurando palavras que me pareceram desconexas:

– Vejo carros blindados, aeronaves, lançadores de mísseis e foguetes nas imediações de uma espécie de palácio ou casarão. Vejo soldados e pressinto agitação!

– Ora, minha senhora! Com todo respeito, a senhora me diz ser capaz de divisar o futuro e, no entanto, parece me relatar um episódio ocorrido lá em minha adolescência, quando eu tinha 14 anos, no finzinho do regime militar.  

– Não, gadjo! Estou vendo o futuro nas cartas!

Somos interrompidos por uma das caixas de som, sintonizada em conhecida emissora de rádio, que faz ecoar pela praça, a partir do coreto, os versos tão conhecidos de uma música de Geraldo Vandré: “Há soldados armados, amados ou não / Quase todos perdidos de armas na mão”.

Retomo o diálogo com Consuelo:

– Mentira, dona! Isso aí que a senhora está descrevendo aconteceu em 23 de abril de 1984 (sempre fui bom em História!), dois dias antes da votação da Emenda Dante de Oliveira (que, se aprovada, restabeleceria as eleições diretas para presidente). O comandante militar do Palácio do Planalto, naquela época, por coincidência, era o general Newton Cruz, esse mesmo que, hoje, com 96 anos, recebe proventos de marechal; naquele dia, ele desfilou pela Esplanada dos Ministérios montado num cavalo branco, chefiando um ameaçador comboio de seis mil militares e 116 tanques e carros de combate. A emenda, por fim, não passou, mas foi ali que a ditadura começou a ser enterrada.

– Não, gadjo! Estou a falar do futuro! Não crês em mim? Não crês na vidência de Consuelo?

Meu olhar mergulha, investigativo, dentro do seu, procurando verdade. Ela trescala um aroma de ervas finas e frutas cítricas, um perfume sutil que parece me envolver em uma espécie de rede aromática. Retomo o controle da situação:

– Não, minha senhora! E, agora, se me dá licença, preciso continuar minha caminhada!

Indignado, dou-lhe as costas, duvidando, eu próprio, daquela cena insólita. Estaria sonhando acordado? Ainda consigo ouvir, sem dar atenção, a voz de Consuelo:

Optchá! Que Santa Sara te abençoe e te proteja!

Voltando a cabeça, respondi, em agradecimento, com um breve aceno com a mão direita, por educação. Chego à minha casa com a língua de fora, de cansaço e de susto, abro o jornal enquanto tomo um chocolate quente e tenho um sobressalto. A manchete deste 10 de agosto de 2021 é, justamente, que está programado para a manhã de hoje, nas imediações do Palácio do Planalto, por ordem do presidente Jair Bolsonaro, um desfile de 150 carros blindados, aeronaves, lançadores de mísseis e foguetes, algo sem o menor sentido prático que não seja ameaçar o Congresso Nacional, com o escopo de entregar um simples convite ao presidente da República para presenciar uma operação da Marinha na próxima semana – tarefa que qualquer carteiro cumpriria a contento, e sem provocar estardalhaço algum. E isso, não por acaso, na véspera de a PEC do voto impresso ser votada pelo Congresso.

Meu coração quase sai pela boca! Largo a xícara, o jornal, tudo… e retorno, correndo, à praça, tentando localizar a tal Consuelo. Nada!

Com os pensamentos ainda desencontrados, tento recordar cada palavra dita por aquela mulher como quem monta, sofregamente, um quebra-cabeça. Das caixas de som daquela praça, ecoa, agora, a voz da cantora Simone: “A cigana leu o meu destino / Eu sonhei / Bola de cristal, jogo de búzios, cartomante / Eu sempre perguntei (...)”.

No ar, aquele perfume inebriante parece assinalar no éter a presença de Consuelo…

Nota da redação: Marcelo Henrique, poeta e jornalista. 


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